sexta-feira, 10 de julho de 2009

O problema não é o Sarney

Marcelo Carneiro da Cunha
De São Paulo

http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI3866672-EI8423,00-O+problema+nao+e+o+Sarney.html


José Sarney já estava aqui quando Cabral e frota aportaram em Porto Seguro. Na verdade, Cabral somente recebeu permissão para estacionar seus navios depois de duras negociações com o clã Sarney, porque não é de hoje que eles mandam e desmandam no que se passa do lado de baixo do Equador. E não por acaso Macapá, capital mundial do ex-presidente, fica exatamente sobre a linha que divide o mundo entre o lado de cima e o lado de baixo. Os Sarney desenvolveram uma capacidade histórica de estar sempre exatamente sobre essa linha divisória, se assegurando de estarem alinhados com quem tivesse o poder, e de que o povão ali abaixo se mantivesse na linha. Sob a linha, quero dizer. Cabral teve que prometer que, na volta a Portugal, iria explicar direitinho as normas da casa, quem mandava, quem iria mandar, sempre.

E assim o Brasil se fez.

Não sei quanto a vocês, milhares de leitores dessa coluna, mas eu tenho memória. Não lembro de tudo, nomes de tias, nomes de plantas, partes da célula humana, o valor de Pi até a vigésima casa decimal - essas coisas essenciais de alguma maneira escapam da minha cabecinha. Mas do Sarney eu não esqueço.

Lembro muito, mas muito bem que ele era presidente da Arena, sabem? Aquela Arena, a organização que servia para a direita, empresários de direita, militares de direita, todo mundo de direita, mandar e desmandar na gente, acima e abaixo do Equador, por longos e emburrecidos anos.

Nosso ex-presidente, antes de o ser, comandou a Arena e os que não deixaram passar a emenda das Diretas Já. Eu, diferentemente dos milhares de leitores dessa coluna, não sou bom. Não sou cristão, não perdôo assim, só porque o sujeito fez um monte de horrores e depois rezou vinte ave-marias. Não, e ponto. Eu lembro, guardo num cantinho e uso aquela memória, de tempos em tempos.

Esse pessoal que era do lado de lá da linha, e rapidinho passou para o lado de cá, quando a coisa começou a tremer, não é de cá, é, sempre vai ser, de lá.

E Sarney é um rei entre eles. E eu lembro disso.

Como dizia Darcy Ribeiro, o Brasil é um caso de sucesso. Aqui foi criado um paraíso tropical, desenhado para manter um grupinho assim de gente vivendo bem pra caramba, e o resto que se virasse com a sobra, se houvesse. Isso durou quinhentos anos, mas como tudo que é doce, um dia ia acabar. Sarney e sua turma são os que viveram a vida inteira dessa realidade, a criaram, mantiveram, e souberam a hora de se metamorfosear, de novo com tanta competência que já se foram os manés, aos bandos, virar fiscais do Sarney, naquele maluco plano Cruzado, alguém lembra? Eu lembro.

Hoje, o atual ex várias coisas, mas sempre atual presidente do Congresso, José Sarney, é atacado por fazer o que sempre fez. Sustentar, manter e alimentar o Brasil arcaico, na política, o que é compreensível, e na literatura, o que é imperdoável. Se vocês olham para as fotografias dele, o olhar é de espanto, como o de um menino que se vê castigado por fazer exatamente o que era motivo para tapinhas nas costas e elogios, há muito pouco.

Ele perder o cargo, ou não perder, faz diferença, mas não muita. O problema não é o José Sarney, mas o arcaico presente nas estruturas do nosso país. Nossa luta é a da modernidade versus antiguidade, nas práticas e visões. A queda do Sarney é apenas a queda de um sujeito, por mais representativo que ele seja de tudo isso que está aí. Pois que se o Sarney se vai, muita coisa fica. Por escolha de eleitores abaixo do Equador, figuras como Renan Calheiros e Fernando Collor estão ali mesmo, nesse mesmo Congresso, vivinhos - e muito - e saltitantes.

Não tenho nada contra a remoção do ex presidente José Sarney da vida pública brasileira, por meios legais e institucionais, claro. Mas, estimados leitores, isso em si vai adiantar tanto quanto aulas de natação para a minha piscina de três metros de comprimento e centímetros de profundidade. Bom para a aparência, nada bom para o conteúdo. Porque o conteúdo continua lá, aguardando pacientemente pelo desaquecimento global das notícias dos escândalos, para seguir tocando os negócios como sempre.

O que tem que sair de cena é o arcaico, nas figuras e nas práticas e isso é tanto uma questão de esforço quanto de tempo. Uma nova geração tem que surgir, está surgindo, para reformar o nosso jeito de fazer e ser. No Nordeste mesmo, por tanto tempo imagem do nosso atraso de origem colonial, surgem alguns dos melhores quadros novos da política brasileira, em lugares como Sergipe, Bahia, Piauí, Ceará. Ao mesmo tempo em que cobramos do Congresso que remova esses maus modelos, precisamos dar apoio ao novo novo, e não ao novo que se faz de novo, como um dia Collor fez, como hoje caras como o Kassab fazem. Precisamos do novo de verdade, com cara de novo, cheiro de novo, e melhor, a novidade do novo. E um novo que seja mesmo diferente do antigo no que importa! Um novo que venha finalmente colocar a gente, os debaixo da linha, sobre ela, acima dela. Esse é o Brasil que começa, no comecinho, a acontecer e que precisa de nós e do nosso apoio, pra finalmente tomar jeito.

Marcelo Carneiro da Cunha é escritor e jornalista. Escreveu o argumento do curta-metragem "O Branco", premiado em Berlim e outros importantes festivais. Entre outros, publicou o livro de contos "Simples" e o romance "O Nosso Juiz", pela editora Record. Acaba de escrever o romance "Depois do Sexo", que foi publicado em junho pela Record. Dois longas-metragens estão sendo produzidos a partir de seus romances "Insônia" e "Antes que o Mundo Acabe".

Nenhum comentário: