Em entrevista exclusiva para Terra magazine, o porta-voz da organização WikiLeaks, Kristinn Hrafnsson, condena o sigilo dos documentos da Ditadura Militar Brasileira (1964-1985) e afirma que as recentes, e cada vez mais frequentes, invasões hacker a sites oficiais de órgãos públicos são expressões de "frustração e raiva" motivadas por erros, sejam eles do governo ou de outras corporações.
"É uma traição com a geração atual não dar acesso aos arquivos históricos", disse para a repórter Marcela Rocha
Em 12 de julho, a justiça britânica decide se extradita para a Suécia o idealizador e principal líder do WikiLeaks, Julian Assange. O islandês Hrafnsson está no projeto desde 2009, quando abandonou o jornalismo no mainstream - como ele mesmo caracteriza -, e é, atualmente, responsável por filtrar documentos e definir estratégias de como publicá-los mundo afora.
No Brasil desde quarta-feira para dar palestras no congresso da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraj) e na agência parceira Pública, Hrafnsson fez uma pausa de 40 minutos para conceder uma entrevista a Terra Magazine numa charmosa vila na Barra Funda, zona Oeste da capital paulista.
Confira a íntegra da entrevista:
Terra Magazine - O Wikileaks começou como um grupo de hackers? Hoje, questiona-se se o que a organização faz é jornalismo. O que você acha disso?
Kristinn Hrafnsson - Não é inteiramente verdade que o Wikileaks começou como hacker. Claro que é uma "ideia hacker", de quando Julian Assange era parte de uma comunidade hacker em Melbourne (Austália), há 20 anos. A "ideia hacker" não veio, obviamente, da noção antiga que as pessoas têm de hackear, de invadir e causar desastres, ou até tirar proveitos disso. Não estamos pegando informação para receber benefícios financeiros disso. Basicamente, a ideia é disponibilizar as informações para todos. Meu background é outro, sou jornalista. Mas creio ser essa a ideia que permeou o nascimento do WikiLeaks em 2006.
E agora, o WikiLeaks pode ser considerado jornalismo?
Com certeza. Não há nada de diferente entre o que faz o WikiLeaks e o que fazem os jornalistas, ou o que deveriam estar fazendo. Concordo que nem todos os jornalistas estão fazendo um trabalho apropriado. Temos que admitir que o jornalismo seguiu uma linha que, na minha opinião, foge da ideal. Mas isso não é de agora, foi sempre assim. Sempre houve jornalistas jogando com as mãos de quem detém o poder e sempre houve jornalistas que desconstroem o papel desse poder na sociedade. Ao jornalista, cabe falar as verdades sobre o poder e descobrir o que há de errado. E é isso o que o WikiLeaks vem fazendo: prover uma plataforma para delatores passarem as informações de forma muitíssimo segura, analisar essas informações com precisão para ter certeza de que se tratam de coisas autênticas, para daí então colocarmos para fora, para as pessoas. Antes de 2010, antes de começarmos essa alta quantidade de vazamentos da economia americana e dos departamentos da Defesa e de Estado, estávamos escrevendo as reportagens nós mesmos e publicando no site. Algumas vezes usamos colaborações de jornalistas, mas foram exceções. Por causa dessa vasta informação que conseguimos nos últimos 14 meses, passamos a trabalhar em cooperação com a mídia mainstream.
Você veio ao Brasil participar de um congresso de jornalismo investigativo. Como acredita que o jornalismo vem sendo influenciado pelo WikiLeaks?
De diversas formas. É difícil por o dedo nisso porque há algo na atmosfera do meio jornalístico que vem sendo seguido rapidamente. Eu sei, porque vim do jornalismo mainstream. Há um ano, mais ou menos, os jornalistas ainda achavam que o WikiLeaks estava atacando-os, o que é parcialmente verdade. Isso porque o jornalismo não está funcionando apropriadamente, especialmente nos últimos anos, não estando pronto para descobrir as mentiras.
O governo estuda manter documentos da Ditadura Militar brasileira (1964-1985) sob sigilo porque, segundo justificativas de integrantes da atual gestão, isso poderia trazer problemas à segurança nacional. O que você acha disso?
É abominável que isso seja feito em uma sociedade democrática. A História pertence a todos e é uma parte importantíssima de quem somos. Geralmente, se usam argumentos espúrios para justificar o trancamento de informações dessa natureza. Acredito ser de extrema importância a abertura de todos os arquivos históricos, porque somos muito definidos por nosso passado e não podemos definir nosso presente ou estar em nosso futuro sem conhecer nosso passado. É uma traição com a geração atual não dar acesso aos arquivos históricos.
Um grupo de hackers tem invadido sites oficiais de órgãos públicos como o do governo federal, o da Petrobras e divulgou dados da presidente da República... O que você acha disso?
Vemos esse tipo de atividade por todo o mundo. Eu não endosso, mas não condeno. Não é algo que o WikiLeaks vem fazendo, mas é uma expressão de raiva e de frustração de coisas erradas que vêm sendo feitas pelos governos e corporações.
Uma série de veículos tentou incorporar o modus operandi do WikiLeaks.
O jornalismo investigativo esteve em declínio por muito tempo, porque é caro e cada vez menos recursos foram sendo colocados nessa prática. Vários veículos vêm tentando reproduzir a nossa forma de trabalhar, por exemplo o Wall Street Journal, que foi uma tentativa patética por não ser seguro. A Al Jazira tentou e outros veículos também tentaram ir por esse caminho. Mudamos também a relação de cooperação. No último ano, começamos uma colaboração com três tipos muito distintos de mídia, depois fomos aumentando o número de veículos. Tantas mídias diferentes trabalhando juntas e analisando o mesmo material, dividindo os recursos, as histórias é algo histórico. Estimulamos a bravura e coragem porque mostramos o que deveria estar sendo feito, sem medo de ir em frente, independentemente de fortes processos movidos contra nós, de violência, não só vindos do governo norte-americano e do Pentágono - que são os superpoderes do Mundo -, mas vindos dos gigantes do universo financeiro. Mesmo assim, continuamos com o espírito jornalístico de seguir adiante.
Bradley Manning foi preso pelo governo dos EUA acusado de ter vazado informações sigilosas do Exército para o WikiLeaks. Como a organização garante a segurança das suas fontes?
WikiLeaks faz tudo para proteger suas fontes. Em 100% dos casos obtivemos sucesso. Mesmo se algumas pessoas foram descobertas, garanto que não houve nada que o WikiLeaks tenha feito que comprometesse suas fontes.
Quantas pessoas trabalham no WikiLeaks e quais são as dificuldades estruturais que enfrentam?
São entre 15 e 20 pessoas que trabalham no WikiLeaks e recebem por isso. Temos muitos voluntários trabalhando conosco pelo mundo. A maior dificuldade é, claro, a reação desproporcional e ridícula dos poderes que mencionei anteriormente. Além disso, temos uma série de processos contra nós e o caso que Julian vem enfrentando de extradição para a Suécia. Esse caso nos deixou em uma situação muito difícil, já faz seis meses. Tem mais uma dificuldade: a financeira, claro.
O governo britânico decide em Julho sobre o destino de Julian Assange. Como o Wikileaks tem lidado com isso? Esse processo tem a ver com o fato de o site estar "fechado"?
Nós não colocamos ênfase em reabrir o site porque temos trabalhado com capacidade total no material que já conseguimos e com a cooperação da imprensa internacional. Seria errado escoar informação por nosso site, não podemos fazer isso apropriadamente. Mas, garanto que não ficará fechado para sempre, claro.
Você tem sofrido algum tipo de retaliação?
Pessoalmente, não. Não sofro mais do que qualquer outra pessoa que trabalha para lutar contra crimes, corrupção...
Daniel Domscheit-Berg, ex-porta-voz do WikiLeaks, escreveu um livro fazendo ataques contra Assange. Você já leu o livro? O que você acha dele?
Não li. Tenho andado muito ocupado, portanto não leio livros de baixa qualidade. Alguém, em quem confio muito, me disse que é uma leitura penosa porque é muito ruim. Eu sei qual é o ingrediente do livro e das críticas de Daniel Domsheit-Berg. Há um ano ele não é parte da organização, período muito importante na história do WikiLeaks. Desde abril do ano passado ele não tem conhecimento do que ocorre ou de como operamos. Ou seja, ele pode falar do começo, mas não pode falar do que veio depois.
Não está preocupado que isso aconteça novamente?
Não me preocupo com isso. Somos uma organização transparente, e as pessoas podem ver o que fazemos. Estamos, basicamente, colocando nosso trabalho aí fora para todo mundo ver.
Hoje já existem vários outros sites tentando fazer o mesmo trabalho que o WikiLeaks. Como lida com a "concorrência"?
Acho fabuloso, muito bom que apareçam mais e mais sites como o WikiLeaks. É ótimo que tenhamos introduzido essa plataforma de denúncias. E espero que não pare por aí. Não estamos tentando competir por atenção, nem tirar ninguém da concorrência. Não estamos vendendo produtos, isso não é uma organização empresarial. Já existem mais de 20 sites: Polanleaks, EnviroLeaks, Unileaks... Esse conceito está se espalhando e espero que se espalhe mesmo. Só espero que seja estabelecido em bases muito fortes para oferecer métodos de proteção seguros.
Como você vê o futuro do Wikileaks?
Nós continuaremos o nosso trabalho e acredito que poderemos continuar colaborando nesse sentido de mudanças sociais. Isso é muito gratificante. Acredito que podemos deixar a nossa marca na história e me sinto muito orgulhoso por fazer parte disso.
"É uma traição com a geração atual não dar acesso aos arquivos históricos", disse para a repórter Marcela Rocha
Em 12 de julho, a justiça britânica decide se extradita para a Suécia o idealizador e principal líder do WikiLeaks, Julian Assange. O islandês Hrafnsson está no projeto desde 2009, quando abandonou o jornalismo no mainstream - como ele mesmo caracteriza -, e é, atualmente, responsável por filtrar documentos e definir estratégias de como publicá-los mundo afora.
No Brasil desde quarta-feira para dar palestras no congresso da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraj) e na agência parceira Pública, Hrafnsson fez uma pausa de 40 minutos para conceder uma entrevista a Terra Magazine numa charmosa vila na Barra Funda, zona Oeste da capital paulista.
Confira a íntegra da entrevista:
Terra Magazine - O Wikileaks começou como um grupo de hackers? Hoje, questiona-se se o que a organização faz é jornalismo. O que você acha disso?
Kristinn Hrafnsson - Não é inteiramente verdade que o Wikileaks começou como hacker. Claro que é uma "ideia hacker", de quando Julian Assange era parte de uma comunidade hacker em Melbourne (Austália), há 20 anos. A "ideia hacker" não veio, obviamente, da noção antiga que as pessoas têm de hackear, de invadir e causar desastres, ou até tirar proveitos disso. Não estamos pegando informação para receber benefícios financeiros disso. Basicamente, a ideia é disponibilizar as informações para todos. Meu background é outro, sou jornalista. Mas creio ser essa a ideia que permeou o nascimento do WikiLeaks em 2006.
E agora, o WikiLeaks pode ser considerado jornalismo?
Com certeza. Não há nada de diferente entre o que faz o WikiLeaks e o que fazem os jornalistas, ou o que deveriam estar fazendo. Concordo que nem todos os jornalistas estão fazendo um trabalho apropriado. Temos que admitir que o jornalismo seguiu uma linha que, na minha opinião, foge da ideal. Mas isso não é de agora, foi sempre assim. Sempre houve jornalistas jogando com as mãos de quem detém o poder e sempre houve jornalistas que desconstroem o papel desse poder na sociedade. Ao jornalista, cabe falar as verdades sobre o poder e descobrir o que há de errado. E é isso o que o WikiLeaks vem fazendo: prover uma plataforma para delatores passarem as informações de forma muitíssimo segura, analisar essas informações com precisão para ter certeza de que se tratam de coisas autênticas, para daí então colocarmos para fora, para as pessoas. Antes de 2010, antes de começarmos essa alta quantidade de vazamentos da economia americana e dos departamentos da Defesa e de Estado, estávamos escrevendo as reportagens nós mesmos e publicando no site. Algumas vezes usamos colaborações de jornalistas, mas foram exceções. Por causa dessa vasta informação que conseguimos nos últimos 14 meses, passamos a trabalhar em cooperação com a mídia mainstream.
Você veio ao Brasil participar de um congresso de jornalismo investigativo. Como acredita que o jornalismo vem sendo influenciado pelo WikiLeaks?
De diversas formas. É difícil por o dedo nisso porque há algo na atmosfera do meio jornalístico que vem sendo seguido rapidamente. Eu sei, porque vim do jornalismo mainstream. Há um ano, mais ou menos, os jornalistas ainda achavam que o WikiLeaks estava atacando-os, o que é parcialmente verdade. Isso porque o jornalismo não está funcionando apropriadamente, especialmente nos últimos anos, não estando pronto para descobrir as mentiras.
O governo estuda manter documentos da Ditadura Militar brasileira (1964-1985) sob sigilo porque, segundo justificativas de integrantes da atual gestão, isso poderia trazer problemas à segurança nacional. O que você acha disso?
É abominável que isso seja feito em uma sociedade democrática. A História pertence a todos e é uma parte importantíssima de quem somos. Geralmente, se usam argumentos espúrios para justificar o trancamento de informações dessa natureza. Acredito ser de extrema importância a abertura de todos os arquivos históricos, porque somos muito definidos por nosso passado e não podemos definir nosso presente ou estar em nosso futuro sem conhecer nosso passado. É uma traição com a geração atual não dar acesso aos arquivos históricos.
Um grupo de hackers tem invadido sites oficiais de órgãos públicos como o do governo federal, o da Petrobras e divulgou dados da presidente da República... O que você acha disso?
Vemos esse tipo de atividade por todo o mundo. Eu não endosso, mas não condeno. Não é algo que o WikiLeaks vem fazendo, mas é uma expressão de raiva e de frustração de coisas erradas que vêm sendo feitas pelos governos e corporações.
Uma série de veículos tentou incorporar o modus operandi do WikiLeaks.
O jornalismo investigativo esteve em declínio por muito tempo, porque é caro e cada vez menos recursos foram sendo colocados nessa prática. Vários veículos vêm tentando reproduzir a nossa forma de trabalhar, por exemplo o Wall Street Journal, que foi uma tentativa patética por não ser seguro. A Al Jazira tentou e outros veículos também tentaram ir por esse caminho. Mudamos também a relação de cooperação. No último ano, começamos uma colaboração com três tipos muito distintos de mídia, depois fomos aumentando o número de veículos. Tantas mídias diferentes trabalhando juntas e analisando o mesmo material, dividindo os recursos, as histórias é algo histórico. Estimulamos a bravura e coragem porque mostramos o que deveria estar sendo feito, sem medo de ir em frente, independentemente de fortes processos movidos contra nós, de violência, não só vindos do governo norte-americano e do Pentágono - que são os superpoderes do Mundo -, mas vindos dos gigantes do universo financeiro. Mesmo assim, continuamos com o espírito jornalístico de seguir adiante.
Bradley Manning foi preso pelo governo dos EUA acusado de ter vazado informações sigilosas do Exército para o WikiLeaks. Como a organização garante a segurança das suas fontes?
WikiLeaks faz tudo para proteger suas fontes. Em 100% dos casos obtivemos sucesso. Mesmo se algumas pessoas foram descobertas, garanto que não houve nada que o WikiLeaks tenha feito que comprometesse suas fontes.
Quantas pessoas trabalham no WikiLeaks e quais são as dificuldades estruturais que enfrentam?
São entre 15 e 20 pessoas que trabalham no WikiLeaks e recebem por isso. Temos muitos voluntários trabalhando conosco pelo mundo. A maior dificuldade é, claro, a reação desproporcional e ridícula dos poderes que mencionei anteriormente. Além disso, temos uma série de processos contra nós e o caso que Julian vem enfrentando de extradição para a Suécia. Esse caso nos deixou em uma situação muito difícil, já faz seis meses. Tem mais uma dificuldade: a financeira, claro.
O governo britânico decide em Julho sobre o destino de Julian Assange. Como o Wikileaks tem lidado com isso? Esse processo tem a ver com o fato de o site estar "fechado"?
Nós não colocamos ênfase em reabrir o site porque temos trabalhado com capacidade total no material que já conseguimos e com a cooperação da imprensa internacional. Seria errado escoar informação por nosso site, não podemos fazer isso apropriadamente. Mas, garanto que não ficará fechado para sempre, claro.
Você tem sofrido algum tipo de retaliação?
Pessoalmente, não. Não sofro mais do que qualquer outra pessoa que trabalha para lutar contra crimes, corrupção...
Daniel Domscheit-Berg, ex-porta-voz do WikiLeaks, escreveu um livro fazendo ataques contra Assange. Você já leu o livro? O que você acha dele?
Não li. Tenho andado muito ocupado, portanto não leio livros de baixa qualidade. Alguém, em quem confio muito, me disse que é uma leitura penosa porque é muito ruim. Eu sei qual é o ingrediente do livro e das críticas de Daniel Domsheit-Berg. Há um ano ele não é parte da organização, período muito importante na história do WikiLeaks. Desde abril do ano passado ele não tem conhecimento do que ocorre ou de como operamos. Ou seja, ele pode falar do começo, mas não pode falar do que veio depois.
Não está preocupado que isso aconteça novamente?
Não me preocupo com isso. Somos uma organização transparente, e as pessoas podem ver o que fazemos. Estamos, basicamente, colocando nosso trabalho aí fora para todo mundo ver.
Hoje já existem vários outros sites tentando fazer o mesmo trabalho que o WikiLeaks. Como lida com a "concorrência"?
Acho fabuloso, muito bom que apareçam mais e mais sites como o WikiLeaks. É ótimo que tenhamos introduzido essa plataforma de denúncias. E espero que não pare por aí. Não estamos tentando competir por atenção, nem tirar ninguém da concorrência. Não estamos vendendo produtos, isso não é uma organização empresarial. Já existem mais de 20 sites: Polanleaks, EnviroLeaks, Unileaks... Esse conceito está se espalhando e espero que se espalhe mesmo. Só espero que seja estabelecido em bases muito fortes para oferecer métodos de proteção seguros.
Como você vê o futuro do Wikileaks?
Nós continuaremos o nosso trabalho e acredito que poderemos continuar colaborando nesse sentido de mudanças sociais. Isso é muito gratificante. Acredito que podemos deixar a nossa marca na história e me sinto muito orgulhoso por fazer parte disso.
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