Apaguei. Uma tênue luz é
mantida graças aos abomináveis diários a que minha mulher me submete quando
chego em casa. Prazer dela, desconforto meu. Dia após dia, depois de deixar o
carro na garagem, sou obrigado a relatar minhas andanças pelas ruas de Porto
Alegre. Não basta enfrentar o tenso trânsito da cidade, que mexe com meus
nervos, que me deixa tenso. Vontade de parar. Ela não compreende nada disso. É confissão
à mesa da cozinha, no sofá e até na cama. Ela insiste, é teimosa e tem uma
justificativa: “Isso dá um livro”. Muitas vezes, sonolento, sou obrigado a
concordar. Vinte anos rodando de táxi - aguentando passageiros chatos,
conversadores, sorridentes, que querem saber da temperatura ou que levam o
roteiro num papel - dá história. Têm os mudos, os de cara amarrada e os que
querem entrar no veículo de qualquer jeito. De supetão. Tudo vai para o caderninho
dela.
Situação desagradável vira folclore no diário. Imposição da dona. Dias destes, 1h da tarde, minha barriga roncava de fome. Pela manhã, sorvera apenas uma xícara de café preto. Estava na Cidade Baixa e queria chegar rápido no Tudo pelo Social, restaurante barato e farto no cardápio. É almoço e janta. Passava pela Lima e Silva quando um sujeito estabanado fez um sinal, dois sinais, três sinais. Quase se jogou na frente do carro. Ele viu, com olhos furiosos, que eu não levava passageiro. Segui, aumentei a velocidade, reduzi. Pensei que uma síncope poderia estar atingindo o homem. Parecia ter pressa. Dei ré, abri a porta e perguntei:
- Para onde o senhor vai?
- Vou
até a PUC - disse, com respiração entrecortada e já metendo o pé dentro do
carro.
- Espera um pouco, não poderei conduzi-lo.
Pensei que fosse uma corrida curta - expliquei, para surpresa dele.
- Mas... - gritou
histericamente.
- É que eu vou almoçar - justifiquei, com
calma.
- Mas como? Tu estás
trabalhando ou não? Vais morrer de fome. Tens que carregar tijolo. Levantar saco
à cabeça. Catar merda de vaca – vociferou, emendando outros impropérios que nem
lembro mais.
Ele desceu rápido, raivoso e impediu que eu
lhe devolvesse a gentileza. Ou pior: engatasse uma direita em qualquer olho
daquela cara emburrada. Pisei fundo, sem olhar para trás. Mas não esqueci mais
do homem, mesmo quando dava boas garfadas na comida que fizera de meu prato um
bolo de aniversário. Pensei que recusara uma corrida com valor médio de R$ 20,00
por causa de um almoço. Este dinheiro pagaria até três refeições. Enojei, e metade
da comida ficou no prato.
Segui adiante, circulando a
esmo. Levei uma senhora na Cavalhada, Zona Sul de Porto Alegre. Calada entrou,
muda saiu. De lá, fiz outra corrida até Ipanema. Era um guri, que também não
falou. Não recebi com duas corridas o que ganharia com o cara da PUC. Fiquei me
perguntando se ele era professor, aluno ou funcionário. Afinal, devia ter uns
40 e poucos anos. Ou mais quando surtou. Tirei-o do pensamento quando ouvi uma
chamada pelo rádio:
- Preciso de um carro grande,
com ar condicionado, no Estádio Beira-Rio.
- É comigo - avisei, já pensando numa
bela corrida que ultrapassasse os limites de Porto Alegre.
Chegando ao estádio do
Internacional, exultei. Dois homens bem vestidos, paletó e gravata, levando
pastas James Bond e sacolas de compras, me esperavam. Ao entraram, fiz a pergunta
básica:
- Onde os levo?
- No Shopping Praia de Belas -
disse um deles, para minha decepção.
Afinal, percorrera cerca de
três quilômetros para fazer uma corrida de pouco mais de 500 metros.
Passados três minutos, estava
no shopping anunciando o valor registrado no taxímetro: R$ 6,50. Recebi R$ 10,00
de um deles e pensei que ficaria assim. Não, os homens esperaram o troco. E se
enfiaram no centro de compras. Tive prejuízo e não pude discutir ou xingá-los
na hora. Desgraçados, filhos da puta, aproveitadores: soltaria o verbo no
diário da noite. O homem da PUC ficou pequeno diante dos dois.
Pensei na vida de taxista. Na
minha vida, que se arrasta por duas décadas. Lembrei o que já fiz ou deixei de
fazer. Tem motorista que recusa corrida por questão de consciência ou por medo.
Em anos passados, me instalei num dos pontos mais concorridos de Porto Alegre,
mas troquei de lugar porque recusei fazer trabalhos “sujos”. Consumidores de drogas rondavam o ponto. Ali,
solicitavam que motoristas se deslocassem até locais tradicionais para buscar o
produto. A maioria aceitava, mas eu evitei. Não é meu trabalho. E se eu sou
pego com o bagulho?
Naquele dia, vindo do
shopping dos bacanas, passei pelo ponto. Não tinha ninguém e, não sei a razão,
decidi estacionar. Não demorou 15 minutos para que um homem bem vestido se
aproximasse e fizesse a proposta:
- Te dou R$ 20,00 e na volta
recebes o dobro. Toma o endereço. No envelope, está apontada a quantidade que
preciso e o dinheiro deles – propôs.
Pensei, repensei, e nem
respondi. Engatei e segui adiante. Pela segunda vez num mesmo dia neguei uma
boa corrida.
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