sábado, 15 de março de 2008

Filha de desaparecidos argentinos coloca pais adotivos na cadeia

"Que a sociedade deixe de aceitar que se roubem os filhos de outras pessoas." Assediada pelos jornalistas, María Eugenia Sampallo (foto) acabava de escutar na sede dos tribunais de Buenos Aires o pedido da promotoria de 25 anos de prisão para os três autores do roubo de um bebê. Sampallo é ao mesmo tempo a denunciante e o objeto do roubo: essa argentina de 30 anos colocou no banco dos réus pela primeira vez na história do país o homem que a arrancou de sua mãe, praticamente recém-nascida, e o casal que a recebeu e criou.
Assim, no próximo 4 de abril um juiz federal anunciará a sentença sobre a primeira denúncia de um filho de desaparecida contra os que atuaram como pais adotivos e contra o militar que a seqüestrou. Até chegar a esse ponto Sampallo teve de lutar literalmente desde menina para conhecer a verdade. Uma determinação que surgiu em 1986, quando o casal formado por Osvaldo Rivas e Cristina Gómez Pinto enviou sua filha de 8 anos a uma psicóloga para lhe dar uma notícia: na realidade era filha adotiva e seus verdadeiros pais tinham morrido em um acidente. A menina começou a perguntar insistentemente detalhes sobre seus pais biológicos, e um ano depois o casal concordou em "revelar" que sua mãe tinha sido uma empregada doméstica. A curiosidade infantil não parou e a versão mudou ligeiramente, transformando a menina em filha de uma comissária de bordo européia.
Finalmente, vários anos depois, explicaram para a então adolescente que tinha sido abandonada na porta do Hospital Militar de Buenos Aires e recolhida por um amigo da família, o capitão Enrique Berthier, que a havia entregado. O casal não suportou a tensão e se separou dois anos depois de tentar enganar a menina. E um dia, quando esta voltou para casa, a mãe Cristina Gómez, com quem havia ficado, anunciou que "umas velhas" queriam separá-la dela. Tratava-se das Avós da Praça de Maio, que procuravam as crianças nascidas nos centros de tortura da ditadura militar cujas mães tinham sido assassinadas. Mas um teste de sangue realizado para verificar se ela era um desses casos deu resultado negativo.
No entanto, não havia mais como voltar atrás e estava claro que um grave engano pairava no ar. O ambiente tornou-se irrespirável e Cristina Gómez fazia constantes críticas à garota. "Me dizia que eu não era agradecida com eles pelo que haviam feito por mim e que se não fosse por eles eu estaria atirada em uma vala", declarou Sampallo diante do tribunal. Quando completou 19 anos, ela saiu de casa sem levar nenhuma recordação da vida que teve com os que se proclamaram seus pais adotivos. Sampallo, que ainda desconhecia seu nome, voltou a se submeter a um teste em 2000. A Comissão Nacional pelo Direito à Identidade (Conadi) realiza ainda hoje campanhas que animam qualquer pessoa que tenha dúvidas a fazer os exames, e todos aqueles que tiverem um parente desaparecido a doar amostras de DNA para facilitar as identificações. O teste foi um sucesso e pela primeira vez desde que era menina María Eugenia soube uma verdade sobre sua origem.
Na realidade é filha de Leonardo Sampallo e Mirta Barragán. Ambos foram seqüestrados com ela grávida de seis meses. O resto da história já conhecia muito bem. Estela de Carlotto, presidente das Avós da Praça de Maio, revelou um detalhe que a impressionou na primeira vez em que María Eugenia se encontrou com sua verdadeira avó: aquela mulher já adulta sentou-se nos joelhos da idosa, um gesto que havia sido negado à menina que venceu as mentiras.
Para Sampallo o encontro não é o fim do caminho. Ela quer que se faça justiça e que sirva de exemplo em um país onde se calcula que pelo menos 900 crianças foram roubadas e entregues a famílias ligadas ao regime militar. O advogado que representa Sampallo não deixou nenhuma brecha em sua acusação: subtração, mudança de identidade e falsificação de documento público. "Trabalhamos há muitos anos nesse julgamento. Temos total e absoluta certeza do que essas
pessoas fizeram, por isso pedimos 25 anos de prisão", afirmou Tomás Ojea-Quintana. Ontem, o Ministério Público apoiou o pedido de 25 anos de prisão para os acusados, o máximo que a lei permite. Enquanto aguarda, Sampallo prefere que os refletores não se concentrem nela e não quer se estender com a imprensa. "Não importa o que passa pela minha cabeça, o importante é que se faça justiça."

Matéria originalmente publicada no jornal El Pais, por Jorge Marirrodriga e traduzido por Luiz Roberto Mendes Gonçalves