quarta-feira, 11 de março de 2009

Carta para Dom José Cardoso Sobrinho

*Paulo Gaiger

Ainda bebê, sem opção, conhecimento e discernimento, como milhares de crianças que recém conhecem as fraldas, fui batizado na igreja católica. Alguns oito ou nove anos depois, fui coagido, sem o saber, a cumprir a 1ª comunhão, como tantos meninos e meninas de minha idade: dois atos de violência que ainda se repetem sem que pais e mães reflitam maduramente sobre sua razão e sobre o direito de escolha de seus filhos e filhas. A imagem de um deus todo-poderoso e onipresente, fustigando faltosos, infiéis e pecadores, atemorizou gerações de infantes e ainda contamina o imaginário de milhares de cristãos. Embora durante os muitos anos de minha juventude, eu tenha me dedicado à “militância” cristã, através de grupos de jovens vinculados à teologia da libertação e às comunidades de base, as experiências deste período associadas à constante reflexão, me levaram ao distanciamento da igreja católica e de seu deus, especialmente em razão dos rumos conservadores e infames que o Vaticano foi desenhando em seu nome. À igreja faz falta, sim, mais do que nunca, um Hélder Câmara, um Pedro Casaldáliga, um Evaristo Arns, um Pedro Arrupe. Na ausência deles, hoje prefiro os âmbitos humanistas, eqüitativos, democráticos e éticos, onde construímos caminhos e somos responsáveis por nossas decisões.
Nestes últimos dias, ao ler as notícias da excomunhão da equipe médica e da mãe da menina de nove anos que sofreu um aborto salvador, voltei a pensar sobre esta igreja e seu deus todo-poderoso, onipresente com suas leis cruéis e bárbaras, como tantas vezes o flagramos nas histórias relatadas no antigo e novo testamentos. Dom José Cardoso Sobrinho, tu tens a esse deus como guia. Talvez porque a mulher na Bíblia e, depois, em Agostinho, é só um objeto abjeto, valor de troca, humilhada e culpada do “pecado original”. A ti, arcebispo de Olinda e Recife, vale mais o estuprador, que é macho-homem, que a vítima, menina inocente, de nove anos, que é uma mulher em formação. O fato de eu ter sido batizado e feito a 1ª comunhão na igreja católica, entretanto, não me obriga a comungar esta infâmia protagonizada por ti. Mais uma vez, não posso me omitir frente a outro ato de tirania, de insensibilidade, desamor e de cegueira. Sou sim, solidário com a menina, com sua mãe e com a equipe médica. Não há outra possibilidade humana e de amor. Por isso, Dom José Cardoso Sobrinho, te peço com toda minha dignidade diante de tua igreja tão indigna, que também me excomungue. Excomungue-me, Dom José, porque não desejo ser cúmplice, ainda que involuntariamente, de tamanha injustiça.

* Professor Doutor da Unisinos, cantor, ator e diretor teatral