terça-feira, 21 de outubro de 2008

Viva o diploma

Muniz Sodré *

Em fevereiro de 2007, a Newspaper Association of America anunciou, durante sua convenção anual em Las Vegas, o lançamento de uma campanha nacional para incutir no público leitor a idéia de que o jornal do futuro será uma “multiplataforma de informação”, o que implica na prática a junção empresarial e cultural do papel com a Web. Daí, slogans do tipo “a Internet é a melhor coisa que poderia acontecer aos jornais”.

Mas será essa também a melhor coisa que poderia acontecer aos jornalistas?

Esta questão tem alguma pertinência para o atual debate sobre a exigência de diploma universitário.

Em princípio, é preciso debater a hipótese de que essa nova face da informação pública possa pôr em crise a própria identidade do jornalismo clássico como mediação discursiva e como funcionalidade específica de um grupo profissional. Disto um claro sintoma é a questão levantada por um arauto da chamada cibercultura: “Seria ainda necessário, para se manter atualizado, recorrer a esses especialistas da redução ao menor denominador comum que são os jornalistas clássicos?”

A resposta, de certo modo, começa a ser dada pelos grandes conglomerados do jornalismo impresso, por meio da progressiva conversão empresarial do papel à eletrônica. Nada impede que o jornalismo troque de suporte preferencial, uma vez que os conteúdos informativos, na medida da independência de sua forma técnica, podem passar de um suporte para outro, sem alterar substancialmente a sua natureza. A despeito do potencial midiático da Internet, a digitalização em si mesma não é um medium, e sim um processo técnico (informático).

Veja-se o livro: mesmo digitalizado continua a ser “livro”, isto é, a organizar seqüencialmente os conteúdos de acordo com a milenar forma códice (codex), embora ainda sejam grandes as dificuldades de leitura de textos extensos na tela do computador. Daí, as hibridizações formais, já praticadas por alguns jornais, entre a escrita tradicional e a escrita para a tela do computador, oferecendo ao público a opção de leitura jornal entre resumos e textos maiores.

Ainda o livro: também não se pode passar por cima da evidência de que, em nossa modernidade, a forma códice (escrita unidirecional, páginas organizadas em cadernos e costuradas), depois chamada livro, impôs-se aos usos e aos espíritos como locus do conhecimento centrado, da leitura que constitui pastoralmente a cidadania, da produção do sentido e do real medidos pela escala do humanismo.

O mesmo se dá com o jornal. Pode trocar de suporte técnico, pode mesmo existir na complementação dos suportes (papel e eletrônica), mas continua impelido, como forma moderna e democrática da comunicação, pela ideologia humanista que garante a cidadania. Eventuais descaminhos não podem elidir a evidência de que a imprensa brasileira, por exemplo, jamais deixou, em seus 200 anos de existência de estar presente, como parte essencial, nas causas que ajudaram a dar à Nação a sua face atual – a abolição da escravatura (de cuja campanha participou a maioria dos jornais provinciais) e a criação da república. O jornalismo, no Brasil e no resto do mundo, reflete as questões públicas decisivas para os rumos da Nação.

Como conceber hoje o funcionamento dessa instituição “quase-pública”, geradora da informação necessária ao cidadão para o pleno funcionamento da democracia, sem uma formação universitária, especializada, de jornalistas? Informação não é mero produto, nem serviço: é o próprio solo da sociedade em que vivemos, é o campo onde joga o cidadão. Se a garantia dessa formação adequada se espelha hoje no diploma, viva o diploma.

* Presidente da Fundação Biblioteca Nacional e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutor em Comunicação pela Sorbonne.

O neoliberalismo dançou

Márcia Denser*

Sei que estou devendo até a alma¹ para os meus leitores, mas não posso deixar de prestar este grande serviço a todos vocês, representado por esta pesquisa das grandes e sábias vozes a interpretar o que realmente está acontecendo por aí, o que fatalmente sinaliza o começo do fim do neoliberalismo, a política cruel que durante trinta anos castiga o planeta. Lá vai, pessoal:

O desmoronamento de Wall Street é comparável, no âmbito financeiro, ao que representou, no geopolítico, a queda do muro de Berlim. Uma mudança de mundo e um giro copernicano. Quem o afirma é o Nobel de Economia, Paul Samuelson: "Esta débâcle é para o capitalismo o que a queda da URSS foi para o comunismo". Termina o período aberto em 1981 com a fórmula de Ronald Reagan: "O Estado não é a solução, é o problema." Durante trinta anos, os fundamentalistas do mercado repetiram que este tinha razão, que a globalização era sinônimo de felicidade, e que o capitalismo financeiro edificava o paraíso terreno para todos. Equivocaram-se.
A "idade de ouro" de Wall Street acabou. E também acabou um período de exuberância e esbanjamento representada por uma aristocracia de banqueiros de investimento, "amos do universo" denunciados por Tom Wolfe em "A Fogueira das Vaidades" (1987). Possuídos pela lógica da rentabilidade de curto prazo. Pela busca dos lucros exorbitantes.
Dispostos a tudo para obter mais lucros: vendas abusivas no curto prazo, manipulações, invenção de instrumentos opacos, titulação de ativos, contratos de cobertura de riscos, fundos Hedge. A febre do proveito fácil contagiou a todo o planeta. Os mercados se sobreaqueceram, alimentados pelo excesso de financeirização que facilitou a alta dos preços.
A globalização conduziu a economia mundial a tomar a forma de uma economia de papel, virtual, imaterial. A esfera financeira chegou a representar mais de 250 trilhões de euros, ou seja, seis vezes o montante de riqueza real mundial. E, de chofre, essa gigantesca "bolha" explodiu. O desastre é de proporções apocalípticas. Mais de 200 bilhões de euros derreteram. A banca de investimento foi varrida do mapa. As cinco maiores entidades desmoronaram: Lehman Brothers na bancarrota; Bear Stears foi comprado com a ajuda do Federal Reserve, por Morgan Chase; Merril Lynch foi adquirido pelo Bank of America; e dois dos últimos, Goldman Sachs e Morgan Stanley (em parte comprado pelo japonês Mitsubishi UFJ), reconvertidos em bancos comerciais.
Toda a cadeia de funcionamento do aparato financeiro colapsou. Não só a banca de investimento, mas os bancos centrais, os sistemas de regulação, os bancos comerciais, as caixas econômicas, as companhias de seguros, as agências de qualificação de risco (Standard&Poors, Moody's, Fitch) e até as auditorias contábeis (Deloitte, Ernst&Young, PwC).
O naufrágio não pode surpreender a ninguém. O escândalo das "hipotecas lixo" era conhecido de todos. Assim como o excesso de liquidez orientado para a especulação, e a explosão delirante dos preços do custo de vida. Tudo isso foi denunciado há tempo. Sem que ninguém se mexesse. Porque o crime beneficiava a muitos. E se seguiu afirmando que a empresa privada e o mercado solucionavam tudo.
A administração do presidente George W. Bush teve de renegar esse princípio e recorrer, maciçamente, à intervenção do Estado. As principais entidades de crédito imobiliário, Fannie Mae y Freddy Mac, foram nacionalizadas. Também o foi o American International Group (AIG), a maior companhia de seguros do mundo. E o secretário do tesouro, Henry Paulson (ex-presidente do banco Goldman Sachs) propôs um plano de resgate de ações "tóxicas" procedentes das "hipotecas lixo" (subprime) por um valor de uns 500 bilhões de euros, que o Estado também adiantará, quer dizer, os contribuintes. Prova do fracasso do sistema, essas intervenções do Estado – as maiores, em volume, da história econômica – demonstram que os mercados não são capazes de se regularem por si mesmos. Se autodestruíram por sua própria voracidade. Ademais, confirma-se uma lei do cinismo neoliberal: privatizaram os lucros mas se socializaram as perdas. Os pobres têm de arcar com as excentricidades irracionais dos banqueiros, e se lhes ameaça, em caso de não quererem pagar, com o seu maior empobrecimento.
As autoridades norte-americanas dedicam-se ao resgate dos "banksters" ("banqueiro gângster"), às expensas dos cidadãos. Há alguns meses o presidente Bush se negou a assinar uma lei que oferecia uma cobertura médica a nove milhões de crianças pobres por um custo de 4 bilhões de euros. Considerou um gasto inútil. Agora, para salvar aos rufiões de Wall Street, nada lhe parece suficiente. Socialismo para os ricos e capitalismo selvagem para os pobres.
Este desastre ocorre num momento de vazio teórico das esquerdas, que não têm um "plano B" para tirar proveito do descalabro. Em particular as da Europa, asfixiadas pelo choque da crise, quando seria tempo de refundação e de audácia.
Quanto durará a crise? "Vinte anos se tivermos sorte, ou menos de dez se as autoridades agirem com mão firme", vaticina o editorialista neoliberal Martin Wolf (1). Se houvesse alguma lógica política, este contexto deveria favorecer a eleição do democrata Barack Obama (em não sendo assassinado) para a presidência dos Estados Unidos no 4 de novembro próximo. É provável que, como D. Roosevelt, em 1930, o jovem presidente lance um novo "New Deal", baseado no neokeynesianismo que confirmará o retorno do Estado à esfera econômica. E que trará, por fim, mais justiça social aos cidadãos. Vai se caminhar para um novo Bretton Woods. A etapa mais selvagem e irracional da globalização terá terminado.

Ignácio Ramonet, jornalista, ex-editor do Le Monde Diplomatique

Entupiu o sistema circulatório do capitalismo. É preciso agir rápido, antes que ocorra a trombose.

É preciso deixar de lado a esperança liberal de que os bancos vão agir em benefício da sociedade e do desenvolvimento. O governo tem que injetar crédito direto na veia do setor produtivo e demais instituições. A palavra que falta dizer é: estatização do crédito.

Lembro que os fatos caminham à frente das idéias também neste caso. Como decorrência da desregulação geral das finanças, desde os anos 70, os bancos sofreram uma mutação em todo mundo. Eles renunciaram à condição original de emprestadores finais, aqueles que geram o crédito e carregam o risco até a liquidação dos contratos: tornaram-se meros corretores das finanças. O banco continua a originar o empréstimo, mas securitiza a operação, revendendo-a no mercado de forma a dividir os riscos.

O problema é que esse mecanismo de defesa degenerou-se.
Assumiu a forma de imensas pirâmides de ativos securitizados, em diferentes versões de derivativos que turbinaram os circuitos especulativos das finanças desreguladas. Sua essência desestabilizadora – são pirâmides invertidas cujo ponto de apoio em valor real se esfumou - só foi reconhecida pelos neoliberais urbi et orbi quando a casa caiu nos EUA, na explosão da bolha imobiliária.

Luiz Gonzaga Belluzzo, economista, professor-titular do Instituto de Economia da Unicamp e presidente do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.

As medidas nacionalizantes de ações e bancos anunciadas pelo primeiro ministro Gordon Brown, do mesmo Labour Party de Blair, tiveram um poder eletrizante em relação aos demais governantes dos países diretamente envolvidos com as causas da crise, nos Estados Unidos, na Europa e na Ásia. As medidas, elogiadas de imediato pelo novo ganhador do Prêmio Nobel de Economia, Paul Krugman, conhecido crítico das políticas econômicas e externas de Bush, foram profundas e cortantes, equivalendo, em alguns aspectos, a aplicação de uma lei marcial nas instituições

Larry Eliot, editor de economia do The Guardian, comentou em vídeo gravado na página do jornal, que chegara "a hora da esquerda". É claro que "esquerda" neste contexto londrino, quer dizer algo diferente do que em Caracas ou mesmo no Rio de Janeiro. Quer dizer a defesa de uma melhor e mais profunda regulamentação dos mercados, coisa com que todos, no momento (na página da CBN vi comentário até do Arnaldo Jabor neste sentido!!) parecem concordar. Parecem? Vejamos.

A reação da The Economist é muito sintomática neste sentido. A revista é uma publicação seriíssima, aberta ao debate político e econômico de uma multiplicidade de correntes, mas com uma posição editorial declarada e assumida em defesa do livre mercado (por isso mesmo, por sua posição ser aberta e declarada, é dos jornais mais confiáveis, daqueles que ainda procuram distinguir fato de opinião).

Em artigo de 9/10 ("Saving the System"), depois de assinalar que, só em setembro, 159 mil trabalhadores norte-americanos perderam o emprego, e que o custo da empreitada já está chegando nos Estados Unidos a 1 trilhão de dólares, duas vezes o custo da guerra no Iraque, diz o jornal: "A direção da globalização vai mudar". Esse processo está sendo revertido de três modos:

1) As finanças do Ocidente voltarão a ser regulamentadas.


2) O equilíbrio entre o Estado e o Mercado está mudando em outras áreas, além da de finanças. Exemplo: o do preço dos alimentos, onde vários governos estão tomando medidas estritas de controle de preços, de limitação de exportações e outras, em escala mundial.

3) Os Estados Unidos estão perdendo a sua posição de vanguarda econômica e a sua autoridade intelectual, em favor de nações que mantém uma posição forte quanto à capacidade de crédito, como a China. Aqui The Economist cita a frase do premiê chinês sobre serem os países do Ocidente os "mestres" e os outros os "discípulos" em matéria de economia: "parece que os mestres estão em dificuldade".
Flávio Aguiar, editor da Carta Maior

A liberalização financeira teve efeitos para muito além da economia. Há muito que se compreendeu que era uma arma poderosa contra a democracia. O movimento livre dos capitais cria o que alguns chamaram um "parlamento virtual" de investidores e credores que controlam de perto os programas governamentais e "votam" contra eles, se os consideram "irracionais", quer dizer, se são em benefício do povo e não do poder privado concentrado. Os investidores e credores podem "votar" com a fuga de capitais, com ataques às divisas e com outros instrumentos que a liberalização financeira lhes serve de bandeja. Essa é uma das razões pelas quais o sistema de Bretton Woods, estabelecido pelos EUA e pela Grã-Bretanha depois da II Guerra Mundial, instituiu controle de capitais e regulou o mercado de divisas.

Pode ser que a paixão pela campanha não seja uma coisa universalmente compartilhada, mas quase todo mundo pode perceber a ansiedade desencadeada pela execução hipotecária de um milhão de residências, assim como a preocupação com os riscos que correm os postos de trabalho, as poupanças e os serviços de saúde. As propostas iniciais de Bush para lidar com a crise fediam a tal ponto a totalitarismo que não tardaram a ser modificadas. Sob intensa pressão dos lobbies, foram reformuladas "para o claro benefício das maiores instituições do sistema... uma forma de desfazer-se dos ativos sem necessidade de fracassar ou quase", segundo descreveu James Rickards, que negociou o resgate federal por parte do fundo de cobertura de derivativos financeiros Long Term Capital Management em 1998, lembrando-nos de que estamos caminhando em terreno conhecido. Como era previsível, as medidas tomadas a esse respeito incrementaram a frequência e a profundidade dos grandes reveses econômicos, e agora estamos diante da ameaça de que se desencadeie a pior crise desde a Grande Depressão. Os EUA têm efetivamente um sistema de um só partido, o partido dos negócios, com duas facções, republicanos e democratas. Há diferenças entre eles. Larry Bartels mostra que durante as últimas seis décadas "a renda real das famílias de classe média cresceu duas vezes mais rápido sob administração democrata que republicana.

Os eleitores deveriam tê-las em conta, mas sem ter ilusões sobre os partidos políticos, e reconhecendo o padrão regular que, nos últimos séculos, vem revelando que a legislação progressista e de bem-estar social sempre foram conquistas das lutas populares, nunca presentes dos de cima.
Noam Chomsky, professor emérito de lingüística no MIT – Massachussets Institute of Technology

O tempo foi passando, passando, a situação do mundo complicando-se cada vez mais, e a esquerda, impávida, continuava a desempenhar os papéis que, no poder ou na oposição, lhes haviam sido distribuídos. Eu que, entretanto, tinha feito outra descoberta, a de que Marx nunca havia tido tanta razão como hoje, imaginei, quando há um ano rebentou a burla cancerosa das hipotecas nos Estados Unidos, que a esquerda, onde quer que estivesse, se ainda era viva, iria abrir enfim a boca para dizer o que pensava do caso.
Já tenho a explicação: a esquerda não pensa, não age, não arrisca um passo. Passou-se o que se passou depois, até hoje, e a esquerda, cobardemente, continua a não pensar, a não agir, a não arriscar um passo. Por isso não se estranhe a insolente pergunta do título: "Onde está a esquerda?" Não dou alvíssaras, já paguei demasiado caras as minhas ilusões.

José Saramago, escritor.

Bom, a notinha mais fraca é, para variar, por conta do Saramago, que se queixa tolamente da "esquerda", tal qual alguém "sem nenhum poder" a culpar "alguma instância superior", porquanto, mais acima, Chomsky esclarece: "a legislação progressista e de bem-estar social sempre foi conquista das lutas populares, nunca presente dos de cima".

Não só das lutas populares, meu amigo, mas do próprio capitalismo selvagem que nos fez o favor de se suicidar. De forma que aqui, agora, esta noite, a liberdade!