quarta-feira, 18 de abril de 2012

Diário de uma corrida cara

                    Apaguei. Uma tênue luz é mantida graças aos abomináveis diários a que minha mulher me submete quando chego em casa. Prazer dela, desconforto meu. Dia após dia, depois de deixar o carro na garagem, sou obrigado a relatar minhas andanças pelas ruas de Porto Alegre. Não basta enfrentar o tenso trânsito da cidade, que mexe com meus nervos, que me deixa tenso. Vontade de parar. Ela não compreende nada disso. É confissão à mesa da cozinha, no sofá e até na cama. Ela insiste, é teimosa e tem uma justificativa: “Isso dá um livro”. Muitas vezes, sonolento, sou obrigado a concordar. Vinte anos rodando de táxi - aguentando passageiros chatos, conversadores, sorridentes, que querem saber da temperatura ou que levam o roteiro num papel - dá história. Têm os mudos, os de cara amarrada e os que querem entrar no veículo de qualquer jeito. De supetão. Tudo vai para o caderninho dela.

                      Situação desagradável vira folclore no diário. Imposição da dona. Dias destes, 1h da tarde, minha barriga roncava de fome. Pela manhã, sorvera apenas uma xícara de café preto. Estava na Cidade Baixa e queria chegar rápido no Tudo pelo Social, restaurante barato e farto no cardápio. É almoço e janta. Passava pela Lima e Silva quando um sujeito estabanado fez um sinal, dois sinais, três sinais.  Quase se jogou na frente do carro. Ele viu, com olhos furiosos, que eu não levava passageiro. Segui, aumentei a velocidade, reduzi. Pensei que uma síncope poderia estar atingindo o homem. Parecia ter pressa. Dei ré, abri a porta e perguntei:

                 - Para onde o senhor vai?
                 - Vou até a PUC - disse, com respiração entrecortada e já metendo o pé dentro do carro.
                - Espera um pouco, não poderei conduzi-lo. Pensei que fosse uma corrida curta - expliquei, para surpresa dele.
                - Mas... - gritou histericamente.
                - É que eu vou almoçar - justifiquei, com calma.
                - Mas como? Tu estás trabalhando ou não? Vais morrer de fome. Tens que carregar tijolo. Levantar saco à cabeça. Catar merda de vaca – vociferou, emendando outros impropérios que nem lembro mais.
                 Ele desceu rápido, raivoso e impediu que eu lhe devolvesse a gentileza. Ou pior: engatasse uma direita em qualquer olho daquela cara emburrada. Pisei fundo, sem olhar para trás. Mas não esqueci mais do homem, mesmo quando dava boas garfadas na comida que fizera de meu prato um bolo de aniversário. Pensei que recusara uma corrida com valor médio de R$ 20,00 por causa de um almoço. Este dinheiro pagaria até três refeições. Enojei, e metade da comida ficou no prato.
                Segui adiante, circulando a esmo. Levei uma senhora na Cavalhada, Zona Sul de Porto Alegre. Calada entrou, muda saiu. De lá, fiz outra corrida até Ipanema. Era um guri, que também não falou. Não recebi com duas corridas o que ganharia com o cara da PUC. Fiquei me perguntando se ele era professor, aluno ou funcionário. Afinal, devia ter uns 40 e poucos anos. Ou mais quando surtou. Tirei-o do pensamento quando ouvi uma chamada pelo rádio:
                - Preciso de um carro grande, com ar condicionado, no Estádio Beira-Rio.
                - É comigo - avisei, já pensando numa bela corrida que ultrapassasse os limites de Porto Alegre.
                Chegando ao estádio do Internacional, exultei. Dois homens bem vestidos, paletó e gravata, levando pastas James Bond e sacolas de compras, me esperavam. Ao entraram, fiz a pergunta básica:
                - Onde os levo?
                - No Shopping Praia de Belas - disse um deles, para minha decepção.
                Afinal, percorrera cerca de três quilômetros para fazer uma corrida de pouco mais de 500 metros.
                Passados três minutos, estava no shopping anunciando o valor registrado no taxímetro: R$ 6,50. Recebi R$ 10,00 de um deles e pensei que ficaria assim. Não, os homens esperaram o troco. E se enfiaram no centro de compras. Tive prejuízo e não pude discutir ou xingá-los na hora. Desgraçados, filhos da puta, aproveitadores: soltaria o verbo no diário da noite. O homem da PUC ficou pequeno diante dos dois.
                Pensei na vida de taxista. Na minha vida, que se arrasta por duas décadas. Lembrei o que já fiz ou deixei de fazer. Tem motorista que recusa corrida por questão de consciência ou por medo. Em anos passados, me instalei num dos pontos mais concorridos de Porto Alegre, mas troquei de lugar porque recusei fazer trabalhos “sujos”.  Consumidores de drogas rondavam o ponto. Ali, solicitavam que motoristas se deslocassem até locais tradicionais para buscar o produto. A maioria aceitava, mas eu evitei. Não é meu trabalho. E se eu sou pego com o bagulho?
                   Naquele dia, vindo do shopping dos bacanas, passei pelo ponto. Não tinha ninguém e, não sei a razão, decidi estacionar. Não demorou 15 minutos para que um homem bem vestido se aproximasse e fizesse a proposta:
                   - Te dou R$ 20,00 e na volta recebes o dobro. Toma o endereço. No envelope, está apontada a quantidade que preciso e o dinheiro deles – propôs.
                   Pensei, repensei, e nem respondi. Engatei e segui adiante. Pela segunda vez num mesmo dia neguei uma boa corrida.

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