sexta-feira, 29 de abril de 2011

O velho e o baú

                             Nesta manhã invernal, como sempre faz, Alberto vislumbra o horizonte cinzento e pisa na areia fofa da Praia de Pinhal, espremida num canto do Litoral Norte do Rio Grande do Sul. Coça a cabeça, toca o nariz gelado, abotoa o casaco de lã e faz menção de voltar para casa. Afinal, ainda é 6h da matina, como dizem neste território sem gente (na areia, é bom frisar). E a atitude mais prudente para um idoso de 70 anos é ficar embaixo das cobertas até o sol dar o ar da graça. Até espirrando está, o que prenuncia a chegada de um resfriado. Ou coisa pior.
                             Não. Não fará isso, mesmo que o vento bata forte e a areia teime em levantar mais de meio metro do chão. Se abaixar, os olhos serão atingidos e a situação ficará deveras ruim. Desde que resolveu morar naquele lugar, levado por um amigo que o visita com frequência, mantém a rotina de caminhadas à beira-mar. Muitas vezes, sem destino. Em outras, seguindo o rumo de um boteco, o único das redondezas que, por coragem do dono, fica aberto o ano todo.
                            Alberto, contador por ofício e aposentado por idade, aproveita os passos lentos e pesados que dá na areia para fazer o balanço de uma vida que lhe foi benéfica em alguns momentos e madrasta em outros. Nenhum morador da praia sabe que o homem alto e grisalho que mora na casa verde e branca da Rua Borborema foi casado. Mais do que isso: tem um casal de filhos quarentões que não vê há mais de 20 anos. Não sabem pela simples razão de que ele nunca fez questão de dizer.
                           A situação aperta o coração do velho quando ele vê passar a primeira alma na beira da praia. Trata-se da manca Sofia, uma misteriosa negra que muitas vezes divide com ele a mesa no boteco do Joaquim, sem nunca lhe dirigir a palavra. Apenas o olha da cabeça aos pés, empina um martelinho de cachaça e observa o mesmo horizonte que Alberto espia agora com o canto do olho. São conhecidos que o desconhecido aproxima mais uma vez.
                          – Bom dia – arrisca dizer, sem ganhar ao menos uma palavra ou um balançar da cabeça.
                          Em seguida, porém, olha para trás e vê presente e passado se cruzarem de forma alucinante, velozmente. Pensa que aquela desconhecida está ali em carne e osso e, vez por outra, faz parte de sua vida. Ou melhor, todos os dias no boteco. Dos filhos, não sabe nada. A última vez que falou com eles foi no início de 1991, quando Marlene, que ele recusa chamar de ex-mulher, lhe procurou levando Marcelo e Fernanda, os filhos, de arrasto. Não fora cobrar a pensão, que ele pagava religiosamente, mas buscar alguns objetos e pertences do trio.
                         Quando selaram o divórcio, depois de algumas brigas cinematográficas e mediações da polícia, ele encheu um baú e o levou para a nova casa. Nem se lembrava mais, tanto que foi à dispensa e encontrou o móvel intacto, sem qualquer sinal de violação. Dentro, encontraram jóias, talhares, livros, discos, canetas, roupas íntimas e tudo que não lhe servia ou interessava. Não tinha saída senão confessar o erro, alegando que fizera aquilo por compulsão. Um mal menor, mas que se transformou em uma mania que o acompanharia o resto da vida. Os três não exibiram qualquer sinal de complacência, viraram as costas, pegaram o baú e o enfiaram numa camionete. Desprezo era o que sentia Alberto.
                        – Bom dia – disse, recebendo, em troca, uma saraivada de insultos que ressoam nos seus ouvidos até hoje.
                         Por isso, a indiferença de Sofia era também um mal menor. E ela estava ali todos os dias e não a mil quilômetros de distância, em São Paulo, onde supostamente moram a ex e os filhos – ele soube por amigos.
                         Vinte anos e Alberto não esquece o episódio do baú, da mesma forma como busca na memória os laços que poderá ter com a moça com quem beberica no mesmo bar e passeia na mesma praia. Num impulso, volve o corpo e imprime um retorno apressado para casa. Não pensa em mais nada, nem mesmo quando passa novamente por Sofia, agora acompanhada de um menino de uns três anos.
                        – Será filho dela? – pensa, mantendo a velocidade dos passos.
                        Chegando em casa, vai direto à garagem, como se já soubesse o que encontraria. Tira o casaco de lã, pois a caminhada apressada e o sol que já brilhava o fizeram suar. Mira tudo que vê no local. Pronto: atrás do automóvel Voyage, encontra um baú, devidamente fechado. Tenta abrir, mas não lembra onde está a chave. Encontra um pé-de-cabra, que usa como alavanca para destrancar o móvel.
                        Aberto o baú, Alberto tonteia, vê o mundo girar à sua volta e quase cai no piso de concreto da garagem. Recuperado, tira de dentro utensílios de cozinha (panelas, talhares, pratos), roupas femininas e artesanato. Nada é seu. Mas de quem será? Puxa pela memória e recorda que a calada e introspectiva Sofia vive praticamente na rua, ora morando sob a marquise do prédio da rodoviária, ora na área de alguma casa de veranista.
                      Mas esta lembrança é recente, pois antes a vira vendendo artesanato e roupas para turistas na praia durante o verão. Caminha rapidamente até a areia e novamente avista Sofia e o menino. Aproxima-se com cuidado, como se faz com um desconhecido, e a convida para ir até sua casa. A resposta é negativa.
                    – Não, não o conheço. Me deixa em paz – defende-se Sofia.
                    – Mas eu quero te mostrar alguma coisa que talvez te pertença – esclarece Alberto.
                     – Não tenho nada – retruca Sofia.
                     – Mas não vendias artesanato? – pergunta o velho, cheio de remorso.
                     – Sim, mas fui roubada. A polícia nem deu bola ­ – lamenta a moça.
                      – Eu roubei. Estão lá em casa. Venha ver – adianta Alberto, com olhos marejados de lágrimas.
                      – Mas então...
                      – Olha, pego as coisas dos outros, mesmo sem utilizá-las. Entenda-me – pede.
                      Sofia não entendeu o que estava ouvindo, mas decide conferir o que o velho que tanto observava no boteco tinha para lhe mostrar. Os três caminham calados até a casa da Rua Borborema, onde Sofia não esconde o espanto ao rever o artesanato e outros utensílios domésticos que tinha quando morava com o pai de Francisco, o menino que observava tudo com olhos arregalados.
                       – Ladrão. Com esta casa e tu rouba de pobre – grita, tapeando Alberto, sem parar.
                       – Desculpe, estou te devolvendo tudo. Não me queira mal – suplica, pedindo que a visitante fale um pouco de sua vida.
                        Refeita da surpresa e mais calma, Sofia explica que morava de aluguel e que o ex-companheiro, operário da construção civil, a abandonou e se mandou para local ignorado. Precisou entregar a casa e vendeu os móveis. Antes, porém, ALberto surrupiara algumas coisas que poderiam manter o seu sustento e do filho. O velho fica comovido com a história.
                        – Façamos o seguinte: tenho algumas economias e posso te ajudar. Podes morar na casinha que tenho aqui nos fundos, e eu compro alguns móveis. É a forma de retribuir o que te fiz – sugere, abraçando Sofia e Francisco.
                       – Não sei o que dizer, mas...
                       – Não precisa. Agora, vamos dar uma caminhada. O boteco já deve estar aberto – convida.
                       Enquanto voltam à praia, um Corsa com placas de Florianópolis e um homem na direção chega lentamente à casa de Alberto, que se vira, sorri e faz sinal positivo.

* Conto produzido na disciplina Escrita Criativa, na PUCRS, em abril de 2011
                          

Um comentário:

Sandra disse...

Jorge, não conhecia esta tua veia literária. Belo e comovente conto. Trilha este rumo, amigo.
Sandra